A atualidade do tomismo em Josef Pieper
The Timeliness of Thomism in Josef Pieper
Felipe de Azevedo Ramos
Instituto Filosófico Aristotélico-Tomista, Mairiporã, Brasil
feliperamos.br@gmail.com
ORCID: 0000-0001-5635-3145
DOI: https://doi.org/10.53439/stdfyt54.27.2024.165-186
Resumo: Como é bem conhecido, Josef Pieper não se identificava como um tomista, embora a sua obra tenha sido muito influenciada pelo pensamento de Tomás de Aquino. De fato, Pieper é considerado um dos maiores tomistas do século XX. Embora Pieper trate brevemente e de maneira muito específica sobre a atualidade do tomismo numa obra, é preciso averiguar o seu conjunto para esclarecer o presente tópico. Seguindo a própria metodologia do autor, isto é, o uso de pequenas questões e perguntas, os subtítulos são sempre interrogativos, começando sobre a questão acerca do próprio tema, o significado da “atualidade” e do “tomismo” até chegar ao cerne do debate, isto é, o tomismo hoje em dia.
Palavras-chave: Josef Pieper, Tomás de Aquino, tomismo, atualidade, tradição
Abstract: As it is well known, Josef Pieper did not identify himself as a thomist, although his work has been greatly influenced by the thought of Thomas Aquinas. In fact, Pieper is considered one of the greatest Thomists of the 20th Century. Although Pieper dealt briefly and in a very specific manner with the current relevance of Thomism in one of his writings, it is necessary to look at the whole of Pieper’s work in order to clarify the topic in question. Following his own methodology, that is, the use of brief questions and answers, the subtitles are always interrogatives, starting with questions pertinent to the subject, from the meaning of “timeliness” and “Thomism” to the heart of the debate, namely, Thomism today.
Keywords: Josef Pieper, Thomas Aquinas, Thomism, timeliness, tradition
Recibido: 16/08/2023
Aceptado: 31/07/2024
Introdução
Segundo Wald (2006, p. 21), Josef Pieper (1904-1997) é o filósofo alemão mais lido de todo o século XX. Mais ensaísta do que propriamente escritor, Pieper conquistou leitores também no grande público, implantando um estilo claro e sintético em temas atuais e de relevância, como a abordagem sobre as virtudes, sempre inspirado por Tomás de Aquino. Foi, outrossim, reconhecido defensor da cultura e dos pilares da civilização ocidental, versando com originalidade sobre temáticas um pouco esquecidas, como o ócio –no sentido clássico da palavra, isto é, otium em latim e σχολή em grego– e a contemplação.
Alguns colegas o consideravam pouco acadêmico. No entanto, várias universidades o convidaram a fazer parte de seus quadros. Pieper recusou todos os convites, preferindo permanecer junto à Universidade de Münster, onde seus cursos suscitavam vivo interesse, bem como a inveja de seus pares (Schumacher, 2009, p. 2).
Embora esse eremita cosmopolita (Kosmopolitischer Eremit), conforme expressão de Inciarte (1998), tenha recebido sólida educação formal universitária, a sua investigação realizou um percurso essencialmente autodidata e independente, o que contrariava os cânones universitários principalmente na Alemanha (Nissing, 2017). Tal postura parte de seu desapontamento com a metodologia de ensino da filosofia na Universidade de Münster. Com efeito, uma de suas obras mais famosas: Was heißt philosophieren? (Pieper, 1995b) pretendeu justamente resgatar a filosofia em seu sentido originário de maravilhamento e de busca pela sabedoria, para além de uma postura hirta e insípida de algumas cátedras no ensino superior.
Vale ainda observar desde logo que alguns ainda reputavam o tomismo de Pieper como inortodoxo, graças à sua insistência na filosofia negativa, segundo a qual a essência das coisas seria desconhecida por nós (Pieper, 2003d, p. 19). De fato, o filósofo de Münster cita com frequência uma passagem fundamental do De veritate (q. 10, a. 1, co.) de Tomás de Aquino: “Rerum essentiae sunt nobis ignotae” (Pieper, 2001b, pp. 125-126). No entanto, como pretendemos demonstrar, essa crítica não possui sólido fundamento.
Desde logo é possível adiantar que é evidente que o Aquinate sempre foi uma fonte de referência para Josef Pieper, embora ele desconfiasse do uso do termo “tomismo”, em particular quando aplicado ao tempo presente. Neste contexto, para facilitar a análise dos textos de Pieper, empregaremos a palavra “tomasiano” para nos referirmos stricto sensu ao pensamento do próprio Tomás de Aquino e “tomista” para alargarmos a acepção também ao pensamento dos seguidores e dos comentaristas do Aquinate.
O tema da “atualidade do tomismo” é central na obra pieperiana. Para analisá-lo de modo cabal é preciso considerar cinco questões: 1) o que seria propriamente “atualidade”; 2) o que é o tomismo, de acordo com Pieper; 3) se este autor, por sua vez, pode ser considerado um tomista; 4) como lidar com Tomás de Aquino nos dias de hoje; 5) se o tomismo pode ser de fato atual.
Seguiremos a metodologia pieperiana para debater o assunto proposto a partir de questões.
O que é atualidade?
Ao versar sobre a atualidade do tomismo em Unaustrinkbares Licht. Das negative Element in der Weltansicht des Thomas von Aquin (Luz insondável. O elemento negativo na cosmovisão de Tomás de Aquino), Josef Pieper (2001d) aborda em primeiro lugar o significado de “atualidade”. O filósofo de Münster esclarece que o atual e o temporal têm como premissa o fato de a inteligência humana ser condicionada ao tempo e à história. Ora, isso não inclui apenas eventos do passado ou do presente, mas também se direciona ao futuro (1998, p. 287).
Ademais, nosso autor sustenta que somente Deus, puro espírito e ser eterno[1], está acima de qualquer relação com o tempo, pois para ele tudo é atual (2001d, p. 130). O homem, por sua vez, existe em status viatoris, isto é, em estado de percorrer uma via e, portanto, intrinsecamente condicionado à temporalidade. O próprio tempo existe na medida da transitoriedade do homem (1996b, p. 260).
O espírito humano, por óbvio, não pode experimentar essa tota et simul possessio própria à eternidade divina, pois é essencialmente finito, temporal, histórico. É certo que o caráter histórico do conhecimento implica em que a verdade emerja com determinados contornos, próprios às distintas épocas. Além disso, certos problemas serão mais urgentes num período e não em outro (2001d, p. 131). Donde a importância da contextualização temporal.
Pois bem, Pieper se pergunta efetivamente sobre o que seria o atual. Responde o autor: “O atual corresponde certamente à vontade direta e positiva de uma determinada época” (p. 131). No entanto, pondera o filósofo alemão, não se trata só de uma vontade, mas também daquilo que específico período necessita. Por certo, a correção a um suposto erro é atual, mas também a presente renúncia à atualidade é paradoxalmente atual (2005, pp. 131-132). Aqui a questão envolve sempre escolhas. Assim mesmo, Pieper questiona a possibilidade de definir, mesmo considerando certa uniformidade de nossa época, o que seria exatamente atual. Isso porque quem poderia afirmar taxativamente o que nossa época quer e o que ela propriamente necessita? (2001d, p. 132).
Vale ressaltar que a atualidade não se opõe necessariamente ao passado, pelo contrário, dele depende. Assim, elucida o filósofo alemão: “A perenidade do passado se impõe, mesmo quando o passado é expressamente rejeitado” (Pieper, 2005, p. 73). Em outro trecho, estabelece ainda: “Chamamos de ‘paradigmática’ uma realização exemplar, a qual, no entanto, não pode ser simplesmente imitada ou repetida e que é, portanto, em parte ‘presente’ e em parte ‘passado’” (p. 78).
Tudo somado, embora o espírito humano esteja circunscrito a fronteiras históricas, não é delas prisioneiro, pois é verdadeiramente espírito, ou seja, é capax universi e, portanto, destinado à totalidade da verdade (2001d, p. 132). O espírito é, por definição, incorruptível, gozando assim do caráter de perenidade.
Nessa esteira, “o progresso do conhecimento em filosofia –comenta Wald (2001)– não pode ser entendido linearmente de acordo com o modelo de aumento constante do conhecimento, como é o caso das ciências empíricas” (p. 471). Não é por menos que a filosofia pode ser considerada uma “ciência do espírito” na terminologia alemã (Geisteswissenschaft).
Toda ênfase contemporânea acerca de uma determinada perspectiva da realidade não significa a negação da totalidade da verdade, como julga certo tipo de racionalismo. Ora, na visão pieperiana, a noção de atualidade contém uma nota de otimismo e de confiança no que acontece naquele exato momento da modernidade.
Muito caro a Pieper é ainda o conceito de “tradição”, como fonte transcendente transmitida entre gerações. Na realidade, a tradição nunca perece, pois é sempre atualizável. Mais ainda, paradoxalmente, uma tradição pode ser até mais atual do que algo simplesmente moderno. Ressalta ainda Pieper (1995b):
No ato filosófico é realizada a relação do homem com a totalidade do ser. O filosofar dirige-se para o mundo como um todo –assim temos dito. Contudo, ao homem é dada “sempre”, “desde sempre”, antes de qualquer filosofia, sempre anterior a ela, uma interpretação da realidade. E essa interpretação da realidade é dada sob a forma de uma tradição (em doutrinas e histórias), que justamente diz respeito ao todo do mundo e a ele diz respeito. (p. 57)
Isso significa que antes de qualquer ato filosófico atual, há uma interpretação da realidade trazida sob a forma de tradição. De fato, o exercício da filosofia acontece sempre dentro de um contexto. Mais ainda, como a Idade Média gerou boa parte da estrutura ocidental que hoje conhecemos, pode-se então atestar, por exemplo, uma “inesgotável atualidade da Idade Média” (2001a, p. 301). O atual, portanto, para Pieper não é simplesmente o que acontece hic et nunc.
Nessa conjuntura, é também possível postular uma “inesgotável atualidade do tomismo”? Para responder a essa questão, é preciso responder previamente o que seria, na ótica pieperiana, o tomismo.
O que é tomismo?
Pieper desde logo adverte que o tomismo pode ser entendido em muitos sentidos (mehrdeutig). Os dicionários costumam defini-lo como o conjunto de doutrinas filosóficas e teológicas de Tomás de Aquino. O filósofo de Münster, por sua parte, especifica:
Se estamos tratando da seguinte atualidade do tomismo, o que quer dizer “tomismo”? Nós tomamos o termo em sentido menos técnico do que seu uso mais amplo, isto é, designando como toda forma de seguimento a Tomás, sobretudo a sua cosmovisão, formulada na própria obra de Tomás de Aquino. O “tomismo” nesse sentido quer dizer nada mais do que a doutrina de São Tomás de Aquino. (Pieper, 2001d, p. 133)
Contudo, para tentar compreender o tomismo, Pieper prefere se concentrar no que ele não seja –uma espécie de abordagem apofática. A título de exemplo, na distinção com outras doutrinas, o tomismo não há de ser visto como um mero oposto ao molinismo no debate sobre a graça sobrenatural, ou em oposição ao suarezismo ou qualquer outra corrente filosófica. Até porque existem diversas chaves de interpretação do tomismo. O próprio suarezismo se escora em larga medida na doutrina tomista, possuindo até mesmo mais semelhanças com ela do que diferenças (p. 133).
Em verdade, para Pieper, o tomismo é um termo ambíguo e questionável. Mas por que seria tão inapropriado? No fundo, por sugerir certa inevitabilidade (Zwangsläufigkeit) na utilização de certas definições polêmicas, mormente quando forma um sistema de doutrinas de modo meramente escolar (p. 134). A sua crítica dirige-se sobretudo à denominada forma manualística no estudo da filosofia, ou seja, baseada em manuais de estudo.
Além disso, não apraz a Pieper a expressão do teólogo vienense Albert Mitterer, para quem o tomismo seria “eclesiasticamente prescrito” (p. 171), ou seja, legalmente obrigatório para a Igreja Católica. A recomendação eclesiástica não pretende fazer tabula rasa dos demais autores em prol de uma unidade ideológica radical. Antes, a filosofia deve estar isenta de ideologias ou preconceitos no seu método. Ademais, na concepção pieperiana, se o tomismo fosse puramente obrigatório, estaríamos no âmbito de uma mera “regulação policialesca” (Polizei-Verordnung), derrogável ao sabor dos ventos. Isso, por óbvio, seria totalmente contrário ao próprio espírito de Tomás de Aquino, que tomou por exemplo Boécio como referência quando este autor praticamente tinha sido esquecido na Idade Média. Em sintonia com Pieper, Bonino (2003b) esclarece: “O tomismo não é nem um partido, nem a doutrina oficial de um partido, mas sim uma venerável tradição de sabedoria, amadurecida pela fé católica” (p. 11).
Nessa esteira, comenta ainda o filósofo alemão: “Parece-me totalmente impossível comprimir a doutrina de São Tomás num sistema escolar de proposições, sem que algo de essencial seja omitido” (Pieper, 2001d, p. 134). Isso ocorre pelo fato de a obra tomasiana ser ao mesmo tempo tão rica e tão pouco estabelecida. Pois bem, esse conjunto de escritos está inserido em altos páramos intelectuais e não poderia ficar circunscrito em um restrito sistema de proposições, ou mesmo reduzida aos já mencionados manuais.
Desse modo, Pieper procura evitar a todo custo uma espécie de reducionismo do pensamento de Tomás. Assim, sustenta ele que o Aquinate, por pertencer ao rol dos grandes mestres, não pode ser reduzido a um ismo qualquer. Em outras palavras, pontua que a doutrina de Tomás não pode ser enquadrada num sistema de pensamento preciso e distinto. Os grandes mestres buscam muito mais uma verdade inabarcável do que propriamente uma originalidade (um ismo). Ao contrário do que se possa cogitar, desagrada-lhes ainda a controvérsia em si mesma (vista como um fim) (pp. 134-135). A busca de Tomás era antes de tudo pela verdade.
A postura do próprio Tomás de Aquino ilustra esses princípios. Por exemplo, quando o Aquinate abordou o tema da iluminação divina no conhecimento humano –que gerou debates hercúleos entre tomistas e agostinianos no século XX–, ele declara que não existe muita divergência entre o pensamento de Agostinho e o seu (non multum refert) (p. 135).
Quando o mestre dominicano oferece respostas às suas famosas questões, ele não despreza a priori nenhuma proposta do passado, tampouco autores tão diversos quanto o romano Cícero ou o persa Avicena. Pelo contrário, dialoga com as diferentes tradições e suas propostas, sem jamais pretender encerrar o assunto. Antes, abre portas para futuras abordagens. Ora, isso tampouco está muito longe do tradicional método platônico (pp. 135-136).
De modo análogo, o Doutor Comum, ao analisar a tradição platônica e a aristotélica, não só conseguiu realizar uma sinopse, mas também desbravou profundidades de ambas tradições, tornando-as assim uma propriedade intelectual específica dele. Assim considerado, o Aquinate não teve nenhum predecessor e, ao que parece, tampouco nenhum sucessor (1997, pp. 202-203), ou seja, na visualização pieperiana, o tomismo é único.
Nosso autor cita ainda Pico della Mirandola (1463-1496) que sintetiza com razão: “Sine Thoma mutus esset Aristoteles” –“Sem Tomás, Aristóteles seria mudo”. Mais ainda, de acordo com Étienne Gilson, citado por Pieper, a Idade Média tem muito a agradecer aos gregos, mas também os gregos muito a agradecer ao Medievo (2001b, pp. 202-203). Eis o papel da tradição, cuja abordagem aprofundada será trazida a lume mais adiante.
Seja como for, não se pode atestar, por exemplo, que o próprio Tomás tenha sido um aristotélico puro, pois, como comenta Pieper, “o que interessava a Tomás em Aristóteles não era Aristóteles, mas a verdade” (p. 200). Comentou ainda alhures: “Não se importem com Sócrates, importem-se com a verdade!” (2002, p. 49). Afinal, já rezava o brocardo atribuído ao Estagirita: “Amicus Plato, sed magis amica veritas”.
Mais à frente, Pieper cita o Quodlibet 4, 18, onde o Aquinate comenta que quando um mestre responde questões com base em meras citações, recorrendo à pura autoridade (nudis auctoritatibus), então o interlocutor sairá de mãos vazias (vacuus abscedet). E conclui que “quando se trata de filosofar, não interessa primariamente um autor histórico, ainda que se chame Aristóteles; o que primariamente interessa é a verdade das coisas” (2001b, p. 202). Isso se aplica inteiramente à vida de Pieper: ele não se preocupava em ser platônico, aristotélico ou mesmo tomista. Ele estava à busca da verdade, custasse o que custasse, tomando para si as célebres palavras do Aquinate no In de caelo (I, lect. 22, 8): “Não quero saber o que os outros pensaram, mas sim como se dá a verdade das coisas” (2003c, p. 76).
Segundo Pieper (2001b), a concepção precipitada de que o jovem Tomás teria querido se tornar desde cedo um aristotélico acabou bloqueando a reta compreensão da obra do autor e do próprio tomismo. Para ilustrar, basta mencionar que há no corpus thomisticum pelo menos 1700 citações de um neoplatônico como o Pseudo-Dionísio Areopagita (p. 192). Todavia, nem por isso Tomás é considerado um neoplatônico. Ademais, o articulus escolástico se assemelha muito mais a um diálogo platônico do que à prosa formal de Aristóteles (p. 226).
Tomás até poderia ter feito outras escolhas, mas não as fez; e se há de fato elementos platônicos no seu pensamento, ele não pode ser considerado um puro aristotélico (tampouco platônico): ele é ambos (p. 173; 191). Ou melhor, o Aquinate é muito mais, ele é simplesmente tomista. De fato, na expressão de Gilson (2005, p. 185), “São Tomás é o melhor intérprete dele mesmo”. Mas Pieper é também um tomista?
Pieper é tomista?
Conforme narra em sua autobiografia, Pieper entabulou o seu primevo contato com Tomás de Aquino através do Comentário ao prólogo do Evangelho de São João. Como a obra ainda não possuía tradução alemã, o jovem estudante a leu no original latino (Pieper, 2003c, pp. 62-63). Embora o filósofo de Münster não tenha alcançado tanto do conteúdo dessa obra, entregou-se como amor à primeira vista e o começo de uma relação de amizade para toda a vida (Schumacher, 2009, p. 226). Um dos elementos que mais o impressionaram na obra do Aquinate, desde o início, foi a sua “lucidez linguística” (Pieper, 2003d, p. 2), o que infelizmente não sempre era comum entre seus pares.
Mais tarde, ainda em sua formação, Pieper (2003c) teve contato com a “austera arquitetura” (p. 75) da Suma Teológica em uma edição popular. Por fim, sua tese de doutorado versou sobre o Aquinate Die ontische Grundlage des Sittlichen nach Thomas von Aquin –O fundamento ôntico da moralidade em Tomás de Aquino– (p. 77).
Como mostra de devotamento de Pieper a Tomás de Aquino, ele menciona que durante a Segunda Guerra Mundial, levava sempre consigo na mochila algum volume da obra do Doutor Angélico (p. 161), cujos apontamentos geraram mais tarde o livro Thomas Brevier –O Breviário de Tomás, 1956.
Pode-se acautelar que Josef Pieper não foi completamente autodidata. O padre Erich Przywara, SJ (1889-1972) moldou em parte a cosmovisão pieperiana (Pieper, 2003d, p. 4), segundo a qual a realidade não pode ser circunscrita a nenhum sistema de pensamento. Isso também é enfatizado por outros conceitos apresentados pelo sacerdote jesuíta, isto é, o sentido do mistério e a teoria da analogia entis (Schumacher, 2009, p. 6). Foi o mesmo Przywara que prescreveu a Pieper, como trabalho em um seminário de férias, a redação de uma interpretação ao artigo primeiro do De veritate de Tomás de Aquino, a fim de estabelecer a relação entre conhecimento, realidade e verdade (Pieper, 2003c, p. 149). Nessa ocasião, mais uma chave foi virada para Pieper.
Josef Pieper tomou São Tomás como “mestre” ou mesmo “grande mestre”, segundo suas próprias palavras (2000a, p. 534), posto este compartilhado com Platão (2003d, p. 16). Com efeito, o Aquinate é sem dúvida o autor mais citado na obra pieperiana. Certamente Pieper pode ser considerado leitor assíduo de Tomás e assumido discípulo (1995a, p. 199). Mais ainda, o filósofo alemão chega a reconhecer Tomás como “o último mestre da ainda indivisa Civilização Ocidental” (1996a, p. 209).
Além disso, nosso autor possuía amplo conhecimento do corpus thomisticum, como se pode comprovar por suas obras sobre o Aquinate, bem como por aquelas que discutem a teoria das virtudes. De fato, o filósofo de Münster participou ativamente no ressurgimento da ética das virtudes de matriz tomista, que teve como protagonistas, entre outros, os filósofos Elizabeth Anscombe (1919-2001) e Alasdair MacIntyre (1929-).
Para Berthold Wald (2003, p. 168), editor das Obras Completas de Josef Pieper, poucos filósofos do século XX ressaltaram tanto a importância de Tomás de Aquino para nossos dias. Em contrapartida, o mesmo Wald ficou tão contrariado pelo fato de Pieper ter sido incluído num léxico de tomistas (Rodheudt, 2006), que recusou qualquer colaboração (Berger, 2006, pp. 351-352). Pois bem, essa postura é em parte inspirada na própria vida do filósofo de Münster, que se sentia desconfortável de ser incluído no rol dos tomistas (Pieper, 2003a, p. 587). Mas por que tanta contrariedade?
Para Pieper, a redução do pensamento tomasiano aos manuais (manualia) coincide com a opinião de Unamuno, que urgia para que esse tipo de literatura fosse completamente desterrado das prateleiras. Para ele, tais escritos não deveriam sequer ser chamados manualia mas sim pedalia... (sic). Para Pieper, o Aquinate teve ótimos mestres, mas seus discípulos não estiveram à sua altura (Lobato, 1999, p. 236). Como descreve Delbosco (2004) Pieper nos apresenta “um Tomás de Aquino despojado de certa armadura escolar, a qual muitas vezes oculta e até deforma o sentido autêntico de seu pensamento” (p. 281).
Pieper relata que, certa vez, quando perguntado em uma universidade norte-americana a qual escola tomista ele estava afiliado –de Friburgo, Lovaina, Laval...–, como de costume, ele os desapontou, pois sequer queria ser rotulado como tomista ou neoescolástico. Na realidade, com justiça recusava os rótulos: por exemplo, certa vez se lamentou pelo fato de ser definido como “existencialista cristão” numa conferência em Chicago (2003d, p. 1).
É preciso ainda salientar que o filósofo de Münster cria que, para compreender a obra de Tomás, era necessário abarcar também a sua pessoa. Efetivamente, com frequência se refere à biografia do Aquinate de modo a introduzir todo esse cabedal doutrinário até para iniciantes (2008, pp. 41-42).
Ao contrário do perfil dos acadêmicos contemporâneos, que sobrevalorizam a “cabeça” em detrimento da dimensão ascética, Pieper relaciona o espírito especulativo de Tomás com a sua continência perfeita: “A personalidade de São Tomás é decisivamente caracterizada pela pureza e, ao mesmo tempo, pela sua paixão no relacionamento com a verdade” (p. 41).
Para Pieper existe, pois, uma íntima relação entre pureza e verdade, entre vida ilibada e conhecimento. O próprio epíteto Angélico remonta precisamente à virtude angélica, praticada eximiamente por ele. De fato, Tomás comenta que a filha primogênita da incontinência é a “cegueira de espírito”. Dessa forma, conclui Pieper (1956, pp. 22-23), somente aqueles que são desinteressados, que não querem nada para si, em última instância os puros, podem conhecer a verdade.
Para tentar responder à indagação inicial desta parte, Pieper pode ser sim considerado pelo menos um adepto desinteressado de uma forma mais aberta de tomismo (Egan, 2009, p. 52), trazendo certamente grandes frutos para o revigoramento de seu estudo no século passado.
Serge-Thomas Bonino (2003a) confirmaria essa tese ao especificar que a essência do “ser tomista é confiar que o Aquinate possa nos introduzir na inteligência do real, em direção à sabedoria” (p. 19). Nessa visualização, Pieper pertenceria certamente ao rol dos tomistas. Mas ele acharia o mesmo?
Para ampliar o debate, tomemos a classificação dos tomismos oferecida pelo mesmo Bonino. Para ele, há três vertentes do tomismo que sinteticamente se dividem em: 1) tomismo de inspiração: que adere de tal maneira ao espírito presumido de Tomás que acaba por relativizar seu pensamento; 2) tomismo fundamentalista: que tem alergia visceral aos condicionamentos históricos do pensamento de Tomás, levando a uma interpretação literal e inaplicável para a atualidade; 3) tomismo vivo: que se esforça em trabalhar por uma viva fidelidade à doutrina de Tomás (pp. 21-23).
Pois bem, quando Pieper prefere não ser incluído entre os tomistas e quando critica a fixidez de certo tomismo e a sua manualística, ele está seguramente se referindo ao segundo grupo, isto é, ao dos “tomistas fundamentalistas”. Tal conjunto pretende colocar o pensamento tomista numa espécie de aura de “pureza eterna” (Schumacher, 2021, p. 378). No entanto, ao analisar a obra e a vida de Pieper, é possível considerá-lo, seguindo a Schumacher (p. 379), como adepto do terceiro grupo de tomistas, isto é, do tomismo vivo. Ora, uma das características precisamente deste tomismo autêntico, vivo, já se encontra na obra de João de São Tomás, para quem o verdadeiro tomista deve ser capaz de ampliar (amplificatio) o pensamento do Aquinate (Ramírez, 1923, p. 186), como o fez magistralmente Pieper em diversas de suas obras. A prova disso é a profícua divulgação delas.
Tomás de Aquino hoje?
Após Pieper iniciar a sua habilitação (Habilitation) em outubro de 1945 na Faculdade de Filosofia da Universidade de Münster, ele passou a observar que as pesquisas filosóficas estavam se concentrando muito mais na história intelectual (Geistesgeschichte) ou apenas no que os autores têm pensado (zu erfahren, was andere gedacht haben). Ora, isso não significa, na sua visão, propriamente filosofar (Pieper, 2003b, p. 239).
Como é evidente, tal dilema é ainda enfrentado nas cátedras de filosofia mundo afora. É fato que o estudo da história da filosofia ajuda a filosofar; entretanto, o exercício da filosofia enquanto tal vai muito além do mero conhecimento histórico. Aplicando essa tese para o estudo do Doutor Comum, Pieper buscava nele muito mais um “Tomás como exemplo” ou como um “mestre” do que propriamente um “Tomás histórico”, preso ao passado.
Entretanto, o próprio exercício da filosofia possui um aspecto temporal. Donde Pieper (1995b) defende alhures que “filosofar significa: distanciar-se não das coisas do dia a dia, mas sim das interpretações correntes, das valorizações corriqueiras dessas coisas” (p. 44). Trata-se, em suma, de um exercício de superação e de constante atualização.
A própria canonização da doutrina tomista por parte da Igreja Católica, diz muito mais respeito à condição exemplar de São Tomás do que propriamente histórica. Mesmo porque Pieper (2000b, pp. 252-253) considera o pensamento tomasiano como uma espécie de polifonia, que perderia sua riqueza se fosse “sistematizado”, à maneira do ocorrido com certas escolas tomistas.
Nessa perspectiva, esclarece o filósofo de Münster:
Apesar de toda a precisão que buscamos em Tomás, nós não estamos concernidos a um “Tomás histórico”, mas à realidade do mundo que, através de sua obra, chega até nós, que é basicamente a mesma para ele e para nós, misteriosa e insondável para ele e para nós. [...] Deste modo, podemos, neste trabalho, encontrar o mesmo mundo de modo mais profundo e com uma consciência mais ampla do que se permanecêssemos circunscritos ao nosso próprio pensamento. (Pieper, 2001e, pp. 60-61)
Deveras, em sua introdução à obra e à vida de Tomás de Aquino –Thomas von Aquin. Leben und Werk– Pieper (2001b, p. 156) apresenta a obra com o intuito de superar a perspectiva histórica, o que, para ele, é o que realmente importa para o exercício da filosofia na contemporaneidade.
Nessa esteira, de acordo com Wald (2001, p. 465), poucos filósofos do século XX compartilharam da convicção pieperiana acerca da importância histórica de Tomás de Aquino para os nossos dias. Sem embargo, como antecipado, o filósofo alemão não propunha um tomismo arqueológico. As obras de Tomás não eram peças de museu, mas sim pedras vivas para a construção de uma catedral de pensamento. Destarte, quando nosso autor tratava do Aquinate, sempre se reportava ao tempo presente (Seibel, 2004, p. 372).
Mas isso não basta; importava também o conhecimento da própria biografia do Aquinate, como já aludido. Com razão, Pieper (1995b) cita Johann Gottlieb Fichte: “Was für eine Philosophie man wähle, hängt davon ab, was für ein Mensch man sei in Erste Einleitung in die Wissenschaftslehre [A filosofia que se escolhe, depende do homem que se é]” (p. 69). Aqui aplicado, a filosofia de Tomás não pode ser desvinculada de sua vida.
Recorde-se neste ponto o clássico princípio escolástico: operari sequitur esse[2]. Assim aplicado, é evidente que o pensamento de Tomás segue o ser de Tomás. Justaposto a nosso tema, vale recordar a frase famosa de Maritain (1999): “De uma crisálida kantiana, não pode sair uma borboleta escolástica” (p. 303). Não há, portanto, tomismo sem Tomás, mesmo quando nos situamos há mais de sete séculos de distância.
Pois bem, tal era a fama de Pieper em interpretar o tempo presente com os olhos de Tomás de Aquino que certa vez lhe indagaram qual seria a posição de Tomás ante a luta de boxe profissional ou sobre a “questão negra” –no contexto do racismo nos Estados Unidos– (Pieper, 2003b, p. 372). É indubitável que Tomás, se hoje estivesse vivo, não se furtaria a esses questionamentos.
De fato, há muitos territórios recentes a serem explorados, que podem variar desde novas perspectivas abordadas pela biologia, pela física e pela psicologia, bem como o estabelecimento de relações com a sabedoria oriental. Pois bem, o Doutor Comum pode ser hoje particularmente eficaz para reafirmar valores do passado e do presente, bem como para corrigi-los (Pieper, 2001d, p. 149). Assim sendo, mesmo as oposições que Tomás teve em seu tempo são aplicáveis ainda hoje. Por exemplo, tanto em seu tempo quanto no presente é possível notar, “de um lado, uma ruptura espiritualística e sobrenaturalística da realidade da criação e, de outro, uma secularização em todas as formas e disfarces” (2008, p. 43). Como diz o ditado bíblico, nihil novum sub sole –nada há de novo sob o sol– (Ecl 1,9).
A própria obra pieperiana perpassa uma gama enorme de temas, a saber, desde a própria essência do filosofar até qual seria a importância do lazer para a sociedade. Porém, pode-se postular que “o grande tema que subjaz os escritos pieperianos é o homem, a antropologia filosófica” (Lauand, 2015, p. 147).
É certo que o filósofo de Münster compartilha a ideia tomasiana de que nenhuma doutrina deve ser descartada a priori. Ao mesmo tempo, para ele, é impossível desvincular a filosofia de Tomás de sua teologia. O Tomás filósofo é o mesmo Tomás teólogo. De fato, Pieper (2001d) adverte que “não existe ‘filosofia de S. Tomás’ que possa ser apresentada separadamente da sua teologia” (p. 145). Esse princípio se aplica até quando a teologia é negada, como na filosofia de Sartre, para quem não existe essência humana, porque, segundo ele, não há Deus que a possa conferir (p. 146).
Não obstante, há em Tomás uma clara distinção entre filosofia e teologia, entre fé e conhecimento. Isso, porém, não impede que a filosofia tomasiana esteja profundamente vincada no conceito cristão de criação. Mesmo quando o Aquinate está imerso na filosofia aristotélica, ele não deixa de lado a sua visão criacionista (p. 114). Nesse contexto de referências, Pieper denuncia que o totalitarismo do século XX tomou o espaço vazio deixado pelo pensamento cristão (Seibel, 2004, p. 374).
Na realidade, Pieper defende que assim como Tomás se voltou para Aristóteles com séculos de distância a fim de interpretar os problemas de seu tempo, assim também podemos imitá-lo, tomando a obra tomasiana para aplicá-la a nossos dias. Nesse sentido, nosso autor repete a já citada passagem: “Não importa o que os outros filósofos disseram, mas sim a verdade das coisas”. Este é, opina o filósofo alemão, o verdadeiro significado do filosofar (Pieper, 2001c, p. 1). Com efeito, a mais importante questão para Pieper é esse retorno de nossa cultura à verdade em si, sem se prender a historicismos (Seibel, 2004, p. 374).
Comenta ainda nosso autor:
Não deveria ser essa ousada imparcialidade que o jovem frade mendicante da Universidade de Paris reconhece na verdade da cosmovisão aristotélica, ser algo pertencente à tradição do Ocidente Cristão, contra a resistência dos defensores da doutrina tradicional? Tal atitude não pertence ao “espírito”, à ratio do Doutor Comum da Cristandade como um elemento indispensável? Não seria este “estilo” formal de abordagem da realidade também atribuído de exemplar significado e sua própria atualidade? (Pieper, 2001d, p. 147)
O filósofo de Münster declara ainda que não se trata de fazer propriamente uma defesa do Aquinate ou um exercício de apologética, mas sim realizar um diálogo entre o Zeitgeist e a sabedoria tradicional do Ocidente e perceber o que Tomás tem a dizer, a corrigir ou mesmo negar na atualidade (pp. 139-140). Como se expressou ainda Bonino (2003a): “A busca pela verdade, sobretudo as verdades fundamentais, jamais é um empreendimento solitário” (p. 16).
De uma parte, pode-se dizer que a grandeza de São Tomás residia em seu reverencial silêncio ante a inexpressividade e incompreensibilidade do ser (Pieper, 2001b, p. 297). Com efeito, nem toda a doutrina de um autor, muito menos da envergadura do Aquinate, pode ser contida em obras escritas. Comenta ainda Pieper (2001d): “Pode-se sustentar simplesmente que a doutrina de um pensador é precisamente ‘o não expressado no que é expressado’. É com essas palavras que Heidegger começa a sua própria interpretação do texto platônico” ( p. 113).
Pois bem, de um lado, o já expressado pelo Doutor Comum influenciou seguidores de vertentes mais diversas, como entre bizantinos e judeus (Upham, 2011, pp. 512-514). Por outro lado, o Aquinate não escolheu qualquer doutrina a esmo; ele escolhe tudo, desde que esteja na trilha da busca pela verdade (Pieper, 2001b, p. 173).
Nesse sentido, não há e jamais haverá ponto final na doutrina tomista. Basta recorrer às quaestiones disputatae para perceber a faceta de um Tomás problemático, no sentido de interpor problemas, dificuldades e até mesmo aporias no debate. Ora, como não se pretende oferecer nelas uma resposta cabal, Pieper (p. 242) percebe nelas um caminho, à maneira dos diálogos platônicos, para uma incessante busca pela verdade.
E assim podemos concluir com Pieper (2001d):
Esta mesma estrutura do ensino de São Tomás permanece relevante para a atualidade, tanto no sentido temporal quanto atemporal. Pode-se dizer que a atualidade de São Tomás reside em larga medida no fato de que não pode existir um “tomismo”. (p. 136)
Em outras palavras, é precisamente porque o pensamento tomasiano não pode ser circunscrito a um corpus doutrinário, que ele pode ser sempre atualizável. Eis o paradoxo da resposta.
Atualidade do tomismo?
Mas então, na visão pieperiana, pode existir verdadeiramente uma atualidade do tomismo?
Como já se aludiu, a atualidade de Tomás não pode residir num “ismo” (como é o caso do “tomismo”), pois não é possível resumir o pensamento do Doctor Communis em um conjunto de doutrinas a ser ensinado em bancos escolares. O nosso autor argumenta que frases frequentemente citadas pelo Aquinate –como “a essência das coisas é desconhecida para nós”–, são omitidas nos manuais tomistas. Estes, por sua vez, ao contrário do próprio Tomás, que se exprime numa linguagem viva, baseiam-se em puras terminologias (Pieper, 1995a, p. 202).
Analisando a própria vida de Tomás, também chamado de “doutor universal”, pode-se notar que ele logrou unir a tradição filosófica grega à sabedoria cristã dos primeiros séculos. Tudo isso sempre buscando certa ordenação e unidade da verdade, sem, contudo, perder o sentido do mistério (2008, p. 40). Ora, tal unidade não pode ser rotulada de aristotelismo, ou qualquer outro “ismo” (p. 42). Pois bem, a recusa de São Tomás a qualquer tipo de “ismo” não significa uma suspeita a priori de qualquer forma de pensamento. Pelo contrário, significa a abertura à afirmação, à descoberta das realidades das coisas (2001b, p. 298) e, em suma, está intrínseca na universalidade para a qual, por vocação, estão chamadas as universidades.
Tal postura pode ser denominada “tomismo de atitude”, que considera o ensino de Tomás não apenas como “uma substância de doutrinas formuladas explicitamente” (2001d, p. 147).
Assim, pleiteia Pieper (2001b), “quando o ‘tomismo’ se compreende de tal modo que reivindica que o ensino de Tomás pode ser completamente legado a um sistema escolar de proposições, então ele deve ser considerado uma farsa (Fälschung)” (p. 297). Mais ainda, em sua autobiografia, Pieper (2003b) comenta que seria uma farsa separar a “filosofia aristotélico-tomista” (pp. 484-485) da visão de mundo do próprio Tomás de Aquino. Não há filosofia, é óbvio, sem filósofo.
Já diante desse panorama, Pieper sustenta que um tomismo puramente material se prova inadequado para a nossa época, pelo exemplo oferecido na mesma biografia de Tomás. É necessária, portanto, uma atitude de abertura e de magnanimidade, tão características do espírito tomasiano. Ora, isso incluiria certa imparcialidade em relação a qualquer possibilidade de conhecimento da realidade, seja ela de ordem teológica, filosófica, científica ou mesmo puramente empírica. Também implica na preocupação de não omitir nada pertencente ao conjunto de verdades como busca de coerência (2001d, p. 148).
O próprio Aquinate também está ciente de que não existe uma sistemática fechada. Quando entabula diálogos, não exclui ninguém e nenhum tema a priori. Além disso, está convicto de que os conflitos são naturais; antes, presume-se que aconteçam, como instrumento de resolução e harmonização de problemas. Qualquer atitude deve reconhecer a multifacetada realidade das coisas, nunca esgotada por qualquer conhecimento humano.
Por outro lado, esse mesmo tomismo de atitude, para ser fiel a seu mestre, não pode relegar nenhuma parcela da herança da verdade. Tanto Tomás de Aquino quanto Alberto Magno não pretenderam romper com o passado para dar lugar a algo novo. Em sua relação com Aristóteles, ambos não omitiram nem a Bíblia nem Santo Agostinho –e por isso tampouco Platão– (p. 148). A própria estrutura do pensamento humano, esclarece Bonino (2003a) é fundamentalmente “tradicionalista”, no sentido de que é “no interior de uma tradição de sabedoria veiculada por uma determinada comunidade que a pessoa humana se humaniza e acessa o conhecimento pessoal da verdade” (p. 17).
O pensamento de Tomás não pode ser considerado uma mera coleção de doutrinas, mesmo considerando o tomismo como uma atitude (Haltung). Pois bem, um tomismo que se reduz à substância material das coisas se prova hoje inadequado diante de problemas que sequer poderiam ser cogitados na Idade Média. Por isso é necessário recordar o poder afirmativo, a sua capacidade de ser Doctor Communis, seu ecletismo e imparcialidade diante da realidade, que não exclui nenhum tema e nenhuma abordagem a priori, enfim, sua verdadeira magnanimidade de pensamento. Com efeito, a verdade não pode ser circunscrita a nenhum pensamento humano, pelo que há de permanecer sempre aberta a novas formulações.
A obra princeps do corpus thomisticum, isto é, a Summa Theologiae, construiu um original sistema de conhecimento, com inteira confiança na razão natural. No entanto, é preciso recordar, aponta Pieper (2001d, p. 138), que se trata de uma obra inacabada, não necessariamente porque o Aquinate morreu antes de a concluir, mas sim porque teve uma experiência interior que lhe indicara que tudo que escrevera era como que palha diante da divina magnitude.
Ademais, a Summa foi concebida “para a instrução dos iniciantes” (ad eruditionem incipientium), o que significa que mesmo que tivesse sido concluída, não pretendia reivindicar qualquer peremptoriedade. Para o filósofo de Münster, o Tomás “definitivo” –até onde o pode ser– é encontrado sobretudo em suas Quaestiones disputatae. Tal título significa algo como: “Perguntas discutidas em debates”, como resultado de discussões baseadas na disposição de aceitação ilimitada do sujeito ao adversário, sem necessariamente conduzir a um desfecho, mas em direção a uma infinita abertura intelectual para a via do conhecimento (Pieper, 2005).
A possível atualidade de São Tomás não consiste em negar determinada tese (como a do existencialismo), mesmo porque ele defende, sem cair em ceticismo, que a essência das coisas é inalcançável de modo absoluto. A sua atualidade está entre algo de inescrutável e ao mesmo tempo de cognoscível (2001d, p. 143). Mais ainda, Tomás pode ser ainda atual porque os “existencialismos” encontram nele uma contrapartida positiva e até mesmo um corretivo para as suas ideias (p. 137).
Em suma, a atualidade do ensinamento de São Tomás consiste em que, a partir de suas ideias fundamentais, possa haver a oportunidade de aprofundar e reconhecer a verdade na filosofia contemporânea, sem descartar seus perigos, mas também sem adotar uma posição meramente negativa em relação a ela (p. 144).
De fato, Pieper recorda uma passagem célebre da Metafísica de Aristóteles (VII, 1, 1028 b), onde aponta para um “eterno problema do ser”. Tal discussão, comenta nosso autor, jamais será resolvida. Antes, citando uma passagem de São Tomás (In Met. 1, 3, n. 64), pleiteia que o homem não possui o conhecimento da essência das coisas, mas apenas o tem como “emprestado”: “non ut possessio sed sicut aliquid mutuatum” (Pieper, 2001d, p. 139).
Assim sendo, a atualidade está na perenidade, na medida em que a própria verdade é perene. Para Maritain (1983, p. 19), o tomismo para ser perene não há de ser só medieval, ele há de ser outrossim atual e, por isso mesmo, sempre perene. Afinal, o essencial da verdade não é a sua “atualidade”, mas sim o seu próprio caráter de “verdade” em si.
Mais ainda, só a verdade pode corresponder às oportunidades e aos perigos de determinado período, servindo de corretivo e de confirmação para as teorias apresentadas (Pieper, 2001d, p. 150). Nesse sentido, somente a verdade é atual. Portanto, na medida em que qualquer doutrina – seja ela denominada tomismo ou qualquer outro “ismo” –for verdadeira, gozará dos privilégios da perenidade, ou seja, será sempre atual.
Considerações finais
Como se evidenciou, o presente tema possui uma vasta gama de assuntos anexos. Adotando uma visão analítica, esmiuçamos a questão da atualidade do tomismo em Josef Pieper fundamentando-nos em cinco questões.
Primeiramente, nos detivemos sobre o significado de atualidade. O sentido empregado por Pieper supera o uso comum, isto é, quando se refere simplesmente àquilo que pertence ao tempo presente. Para nosso autor, o atual possui uma como que historicidade, fundamentando-se no passado e abrindo portas para o futuro.
O atual também possui uma perspectiva distintamente humana, pois somente o homem pode intuir o tempo, ao passo que, para Deus, tudo é atual.
Nesse âmbito, a tradição joga importante papel, pois por ela é possível manter para sempre a atualidade de uma doutrina. A partir disso, nos perguntamos se o tomismo poderia ser efetivamente atual. Todavia, antes seria necessário responder a duas perguntas fundamentais: 1) O que é o tomismo? e 2) Pieper é tomista?
Pieper chega a formular que tomismo seria nada mais do que seguir a doutrina de Tomás de Aquino. No entanto, a sua tese é bem mais complexa, pois alhures sustenta que se trataria de um termo ambíguo. Isso se dá em parte pelo desejo de Pieper de não circunscrever o pensamento do Aquinate a nenhum “ismo”, dada a riqueza e complexidade da obra tomasiana.
O filósofo de Münster também reconhece a dificuldade de estabelecer um diferencial do tomismo em comparação com outras correntes de pensamento. Mesmo porque o próprio Tomás se inspira tão somente na busca da verdade sem se fiar em uma autoridade específica, seja ela qual for.
O próprio Pieper nunca gostou de ser chamado “tomista”, em larga medida devido à postura adotada por aqueles denominados “tomistas fundamentalistas” ou pelos ditos manuais. Seja como for, Pieper pode ser certamente enquadrado entre os autores do século XX que adotaram Tomás de Aquino como seu principal inspirador. A sua posição estaria muito mais na linha de um “tomismo vivo”, o qual, por ser necessariamente vivo, é sempre atual.
Com efeito, para Pieper, Tomás de Aquino pode ser sempre atual. Hoje, tanto quanto há oito séculos, o Doutor Angélico pode oferecer respostas para as diferentes fases históricas. Em certos aspectos, não há tanta diferença entre as disputationes medievais e os debates hodiernos. Por exemplo, o ateísmo continua a usar o problema do mal como objeção para a existência de Deus. E para alcançar a verdade deste e de qualquer assunto, a inspiração pode com certeza vir de Tomás, como de fato frequentemente ocorre, até mesmo para corrigir algum equívoco de nosso tempo.
A atualidade do tomismo na visão pieperiana jamais pode ser reduzida a um mero conjunto de doutrinas formuladas em manuais (manualística). Isso porque a própria vida e obra do Doutor Comum testemunham a sua abertura para um conhecimento abarcativo e sempre aberto a novas atualizações. Na realidade, tais atualizações, quando bem empregadas, nada mais são do que uma aproximação maior da verdade. De fato, a atualidade há de estar sempre escorada pela verdade. Assim, o tomismo será sempre atual e autenticamente representante do autor que lhe inspira, na medida em que buscar incansavelmente a verdade. De fato, como comprovamos, não há nada mais atual do que a verdade.
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[1] Pieper (2005, p. 155) cita com frequência a expressão clássica de Boécio para expressar a eternidade de modo resumido: “tota et simul possessio” (Boethius, De consolatione philosophiae, V, 6.4: “Aeternitas igitur est interminabilis vitae tota simul et perfecta possessio”).
[2] Tomás de Aquino o formula de formas diversas, tais como: “Agere sequitur ad esse in actu” (C.G., III, cap. 69, n. 20 [Leon. 14, 200b]); “esse est prius natura quam agere” (S. Th., III, q. 34, a. 2, ad 1 [Leon. 11, 347a]).